Brasil e Japão nasce um nova cultura

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Brasileiros no Japão
(5) Entre mangás e karaokês: nasce a cultura brasileira no Japão
sexta-feira 1 de novembro de 2024
Angelo Ishi
Jornalista e professor de sociologia da Universidade Musashi
Neste capítulo, resgatamos histórias que, verdadeiras ou não, fazem parte da memória coletiva dos brasileiros no Japão. Algumas delas foram registradas em forma de mangá. Também surgiram os primeiros concursos de karaokê organizados pelos brasileiros.
(Este capítulo faz parte da série especial “Brasileiros no Japão” produzida para o Ponto de Encontro, e foi transmitido originalmente em 5 de setembro de 2021.)
Fatos ou lendas?
Ewerthon: Então, Sonia, hoje teremos o quinto programa do segmento mensal “Brasileiros no Japão”, por Angelo Ishi!
Sonia: Sim, Ewerthon, no quarto programa, o Angelo nos contou sobre as barreiras de comunicação enfrentadas pelos brasileiros nas lojas japonesas e o início do comércio verde-amarelo aqui no Japão, não foi isso, Angelo?
Angelo: Olá, Sonia e Ewerthon, olá ouvintes, foi isso mesmo Sonia! Hoje vou contar a continuação dessa história, só que pensando bem, no programa passado eu acabei me esquecendo de contar uma história que parece piada, mas pode ter acontecido de verdade com os pioneiros que vieram para cá como dekasseguis.
E: Qual história foi essa, Angelo?
A: É uma história que eu já ouvi de vários brasileiros no Japão, mas você nunca encontra uma pessoa que realmente passou por aquilo, então fica a dúvida se é lenda ou experiência real.
S: Nossa, Angelo, conta logo que história é essa…?
A: Então, é a história de que os brasileiros, por não saberem ler os rótulos dos produtos nos supermercados, teriam comprado umas latinhas de carne em conserva, até comeram e acharam o sabor OK, e só em seguida perceberam que era na verdade uma comida de cachorro! Sim, ração para cães…
E: Agora fiquei com dó de quem pôs isso na boca…
A: Pois é, eu até acho que teve gente que passou por isso, porque as latinhas das comidas para cachorro são muito bem feitas, com um visual bem apetitoso… Mas, por outro lado, esses produtos costumam ter o desenho de cão, para evitar esse tipo de confusão, então tem hora que eu acho que isso é história inventada… Pelo que pesquisei, os fabricantes desses produtos afirmam que, no geral, eles são comestíveis também pelos seres humanos. Mas os internautas japoneses que já experimentaram, por engano ou até de propósito, dizem que eles costumam ser difíceis de mastigar, só são “bons pra cachorro”…
S: Ah, confesse, Angelo, você quis incluir essa história só pra poder fazer no final esse trocadilho do “bom pra cachorro”, não é?
A: Adivinhou, Sonia!
Um mangá com histórias dos dekasseguis

A: Na verdade, são muitas as histórias verossímeis que provavelmente são inventadas. Por exemplo, nos primeiros anos espalhou-se o boato de que um dos trabalhos que mais rendiam era o de lavadores de defuntos nas funerárias, porque seria o cúmulo do trabalho sujo e pesado. Outro boato que circulou entre os brasileiros foi transformado em mangá pelo brasileiro Mário Toma. O Mário foi uma espécie de pioneiro da mídia brasileira no Japão, porque ele lançou duas revistas de mangá, “Os Dekasseguis” e “Missô com Farinha”. E em um desses desenhos, ele conta a história do brasileiro que foi trabalhar como cuidador de lutador de sumô. Como os lutadores de sumô são gigantes, supostamente teriam dificuldade de se lavar sozinhos, então o brasileiro estaria ganhando um bom dinheiro para lavar o lutador…
E: E você chegou a conhecer alguém que tenha trabalhado com isso, Angelo?
A: Não, Ewerthon, nem eu nem o Mário Toma conseguimos encontrar alguém que realmente tivesse trabalhado com isso… Faz parte da lenda dos dekasseguis pioneiros… Aliás, tenho saudades dos mangás do Mário, porque ele documentou de forma bem humorada muitos apuros dos brasileiros. Por exemplo, um dos personagens do mangá dele era o Super Ká, um pernilongo gigante que infernizava o brasileiro no apartamento. E todos sabem que os pernilongos no verão japonês são implacáveis…
S: Realmente, Angelo… Esse nome Super Ká é sugestivo, né? “Ka” em japonês quer dizer justamente “pernilongo” mesmo. E esse é um problemão que os brasileiros enfrentam até hoje…
A: Bom, agora, falando sério, eu expliquei no programa passado que o surgimento do comércio “de brasileiros para brasileiros” aqui no Japão mudou radicalmente o modo de vida de todos. Eu pude conferir o misto de alegria e alívio das pessoas que ficavam longas horas nos primeiros restaurantes inaugurados no circuito Oizumi-Ota, duas cidades famosas pela forte presença brasileira na província de Gunma. Tanto no Restaurante Brasil, em Oizumi, como no restaurante Ipanema, em Ota, o menu era bem variado e abrangia desde churrasco até os pratos do dia mais caseiros. Outro estabelecimento pioneiro foi um karaokê brasileiro…
E: …Nossa, um karaokê brasileiro?
Identidades complexas
A: Sim, foi lá nesse karaokê que eu passei a virada do ano de 1991 para 1992. Isso porque o dono do karaokê organizou um réveillon para os brasileiros poderem ter um fim de ano menos solitário. E esse karaokê é inesquecível para mim porque o seu dono, o Ashitomi, que é descendente de imigrantes da província de Okinawa, me deu a melhor definição que eu ouvi até hoje sobre a identidade étnica de um nikkei. Ele falou que estava cansado de ser perguntado pelos pesquisadores japoneses se ele se considerava mais japonês ou mais brasileiro. Então ele falou assim: “Eu sou 100% brasileiro, 100% japonês e 100% uchinanchu (quer dizer, “okinawano” ou “okinawense”). Ou seja, minha identidade totaliza 300%. Por que não?”
S: Gostei, Angelo, a definição dele sobre a identidade é realmente brilhante!
A: O Ashitomi era muito ativo e organizou também a primeira viagem de fim de ano para um onsen (águas termais), para os brasileiros poderem ter algum lazer na folga de Ano-Novo. Eu me inscrevi nessa viagem para fazer uma pesquisa participativa, e aprendi muito sobre a questão da identidade dos brasileiros no Japão.

E: Qual foi a sua constatação, Angelo?
A: Então, Ewerthon, depois do jantar, o Ashitomi quis dar um momento de entretenimento para os participantes e colocou um samba bem animado, para as pessoas poderem dançar. Só que ninguém entrou na dança. Aí ele perguntou: Ué, pessoal, o que vocês querem fazer? E aí vários pediram para tocar karaokês de enka e J-Pop. Ele atendeu os pedidos e o pessoal ficou um tempão cantando essas músicas japonesas. Foi aí que eu entendi que muitos pesquisadores estavam com uma imagem equivocada sobre os brasileiros no Japão. A teoria deles era que os nipo-brasileiros, quando vieram para o Japão, reforçaram a sua brasilidade e passaram a se interessar mais por samba e Carnaval do que quando estavam no Brasil. Eu percebi que isso era uma meia-verdade, quer dizer, só um lado da moeda. Realmente, os brasileiros trouxeram uma nova cultura para o Japão e introduziram o famoso desfile de samba na principal avenida da cidade de Oizumi, no festival anual de verão. Esse desfile de samba ficou tão famoso que virou até manchete nos principais jornais japoneses. Desde então, todo o pesquisador repete essa história de que o nikkei se achava “japonês” no Brasil, mas se descobriu “brasileiro” no Japão. Sinceramente, não é o que eu conferi na festa do onsen dos brasileiros. Estando só entre brasileiros, eles estavam mais a fim de cantar um karaokê, que é o que estavam acostumados a fazer quando moravam em São Paulo ou Paraná. O samba e o Carnaval eram uma expressão cultural com data e hora marcada perante os japoneses, ou seja, eram fruto do desejo de mostrar com orgulho a sua cultura para o público japonês.

Concursos de nodojiman
S: Interessante, Angelo, o nipo-brasileiro queria expressar o seu lado brasileiro para os japoneses, mas quando não tinha nenhum japonês por perto, ele ficava à vontade para curtir o seu karaokê e se comportar do mesmo jeito que estava acostumado no Brasil…
A: Essa é a minha análise, Sonia! E a prova disso é que os eventos de maior sucesso da comunidade brasileira na década de 90 eram os Nodojiman, concursos de karaokê com eliminatórias em Aichi, Shizuoka, e com a finalíssima no salão nobre do Bunkamura de Oizumi, um salão da prefeitura que comporta centenas de pessoas. E o salão ficava lotado com torcidas de caravanas que vinham de todos os cantos do Japão!

E: Explica melhor isso, Angelo, um concurso nacional de karaokê no Japão organizado pelos brasileiros?
A: Exatamente, Ewerthon! O concurso era literalmente uma cópia do lendário Utá no Champion, o concurso de calouros do programa Imagens do Japão, apresentado pela também lendária Rosa Miyake, que passou na TV Gazeta e em outras emissoras no Brasil. Quem tem uma certa idade, como eu, vai se lembrar que aquele programa dava como prêmios um automóvel e passagens aéreas de ida e volta Brasil-Japão. Agora, adivinhem quais eram os prêmios para os campeões do Nodojiman dos brasileiros no Japão na finalíssima em Oizumi?
S: Não me diga que eram os mesmos…?
A: Resposta certa, Sonia! Até os prêmios eram parecidos, um carro zero e passagens aéreas ida e volta Japão-Brasil. Acho que vocês devem ter percebido que o que aconteceu foi a migração de uma cultura nikkei do Brasil para o Japão. Os dekasseguis transportaram para o Japão uma cultura bem peculiar do nipo-brasileiro, que é a dos concursos de karaokê.
S: Qual foi a música vencedora desse concurso?
A: Ah, agora você me pegou, Sonia, eu não tenho anotado quem foi o ganhador ou ganhadora. Os ouvintes poderiam me ajudar, se alguém conhecer quem foi o campeão, por favor nos escrevam!













































































